HISTORIOGRAFIA E DEMOCRACIA RACIAL NO BRASIL

HISTORIOGRAFIA E DEMOCRACIA RACIAL NO BRASIL

 

O tema escravidão no Brasil passou a ser estudado de maneira mais enfática a partir da década de 1930. Desse período até a década de 1980, pode-se observar uma grande quantidade de pesquisadores abordando o tema, de maneira distinta, colocando o escravo sob sua ótica ideológica.

Com “Casa Grande & Senzala”, Gilberto Freyre lança um novo olhar sobre o negro na historiografia brasileira. A partir de uma análise minuciosa da formação da sociedade brasileira, descreve como se dava a relação senhor-escravo dentro do engenho, ressaltando a benevolência e a solidariedade que permeavam nesse universo, criando, dessa forma, o mito da democracia racial. Para sustentar sua tese, Freyre afirma que brancos e negros eram “duas metades confraternizadas, que se enriquecem mutuamente de valores e experiências diversas”, escravos domésticos eram tratados como familiares, pessoas da casa, parentes pobres; sentavam-se à mesa, passeavam com os senhores. Analisa a presença negra na história do Brasil, como esteio indispensável para a colonização portuguesa.

 

“Os escravos vindos das áreas de cultura negra mais adiantada foram um elemento ativo, criador, e quase que se pode acrescentar nobre na colonização do Brasil; degradados apenas pela sua condição de escravos. Longe de terem sido apenas animais de tração e operários de enxada, a serviço da agricultura, desempenharam uma função civilizadora. Foram a mão direita da formação agrária brasileira, os índios, e sob certo ponto de vista, os portugueses, a mão esquerda.”

 

A sua tese principal sobre a democracia racial é ainda a questão mais lembrada sobre seus escritos. Mesmo porque esta tese foi adotada pelo Estado Novo como forma de projetar para o mundo a idéia de um Brasil que não tinha em seu passado escravocrata um problema para seu desenvolvimento, pois a mistura das raças passou a ser um ponto positivo para a formação da nação.

Uma das partes mais importantes do debate diz respeito também à inovação da metodologia de Freyre que passou a freqüentar todas as áreas da casa para descrever a vida cotidiana do brasileiro.

A idéia de escravidão patriarcal foi modernizada pelo historiador americano, Eugene Genovese, que faz um estudo sobre a escravidão nos Estados Unidos. O aspecto central de sua obra, é a da hegemonia dos senhores sobre os escravos, conceito extraído do pensador marxista Antonio Gramsci, o qual significa a direção consensual de uma classe dominante sobre a aceitação de uma classe subalterna. Isso se faria pela lei, pela religião, sobretudo, pelo tratamento patriarcal que permitia aos escravos obter concessões dentro da sociedade escravista.

No início da década de 60, surge na chamada Escola Paulista, formada por Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Emília Viotti da Costa e outros, uma revisão no tema escravidão, que combatia o mito da democracia racial defendido por Freyre, questionando as relações doces e benevolentes entre senhores e escravos, denunciando os horrores da escravidão em nosso país. Concluíram que as condições extremamente duras da vida sob o cativeiro haviam destituído os negros das habilidades necessárias para serem bem sucedidos na vida em liberdade. As condições desfavoráveis da vida em cativeiro teriam desprovido os escravos da capacidade de pensar o mundo a partir de categorias e significados sociais que não aqueles instituídos pelos próprios senhores, ocorrendo assim, uma “coisificação social” dos negros sob a escravidão. A violência exercida pelo sistema escravista chegava a fazer com que os negros concebessem a si mesmos como não-homens, como criaturas inferiores, como “coisas”, daí a denominação “teoria do escravo-coisa”.

Para Florestan Fernandes, o dilema racial brasileiro difere radicalmente desta visão centrada principalmente nos aspectos de ordem cultural da nossa sociabilidade, os quais supostamente indicariam a existência de uma democracia racial nos trópicos.

Ao tomar como referencial de análise a situação dos negros e mulatos no momento imediatamente posterior à abolição da escravatura, Florestan Fernandes infere que as benesses de ordem cultural tão amplamente ressaltadas por autores culturalistas, como Gilberto Freyre, - para quem todo brasileiro traz na alma, quando não no corpo também, a influência do africano na ternura, na música e na culinária, - contribuíam para camuflar a desintegração social do negro brasileiro que, em meio à evolução da sociedade e seus ciclos econômicos, ficara excluído do novo sistema de relações de trabalho e destituído de quaisquer iniciativas de ressocialização à nova ordem social baseada no trabalho livre.

Os revisionistas da década de 60 viam uma saída para os escravos: a resistência aberta, a rebeldia, que consistia na única maneira de se afirmarem como pessoas humanas, como sujeitos de sua própria história. Para Clóvis Moura, só os escravos que fugiam e participavam de quilombos, eram escravos que combatiam o regime escravista. Por outro lado, aqueles que permaneciam no trabalho, que não fugiam para os quilombos, que não se insurgiam, consolidaram o regime escravista.

A historiadora Emília Viotti, tentando compreender a criação do mito da democracia racial, sem deixar de criticá-lo, afirma que os brancos beneficiaram-se com o mito, mas também é verdade que os negros beneficiaram-se igualmente, embora de uma maneira mais limitada e contraditória. A negação do preconceito; a crença no processo de branqueamento; a identificação do mulato como uma categoria especial; a aceitação de indivíduos negros entre as camadas da elite branca tornou mais difícil para o negro desenvolver um senso de identidade como grupo. Por outro lado, criaram oportunidades para alguns negros ou mulatos ascenderem na escala social. Embora socialmente móveis, os negros tinham, entretanto, de pagar um preço pela sua mobilidade. Tinham que fingir que eram brancos. Negros de alma branca. Ela enfatiza que esta mobilidade social seria, na verdade, a instituição do clientelismo e da patronagem.

Segundo a ótica de Fernando Henrique Cardoso, que aborda as condições de existência social do negro no Brasil antes e depois da abolição, o escravo que era visto como simples instrumento de trabalho e possuidor de uma consciência passiva, na transição da sociedade de castas para a sociedade de classes, passava por um processo de alienação pra poder assim integrar-se à sociedade da época, denotando que, mesmo após a abolição, os negros continuavam carentes de consciência da sua condição política e social. Os escravos eram, nas palavras de Fernando Henrique, testemunhas mudas da história.

Os trabalhos da Escola Paulista influenciaram, praticamente, todos os estudos posteriores sobre o tema e marcaram a formação de muitos militantes do movimento negro.

Os anos 80 marcaram um revigoramento da produção historiográfica sobre o tema escravidão e abolição no Brasil. Inúmeras teses, tanto no contexto nacional como estrangeiro, contribuíram pra uma nova abordagem da história, ousando questionar algumas verdades já estabelecidas, principalmente as posições teóricas defendidas por estudiosos que publicaram seus livros nas décadas de 60 e 70.

Baseados em trabalhos de investigação empírica, os historiadores da década de 80 passaram a ver o negro como um agente ativo na sociedade escravista. Consideravam como limitados os estudos que vêem a escravidão como um sistema absolutamente rígido, quase um campo de concentração, em que o escravo aparece sempre como vítima, como também, os estudos que supervalorizam o heroísmo da rebeldia. Para estes, o sistema escravista – como qualquer outro – não poderia viabilizar-se apenas pela força.

Para João José Reis e Eduardo Silva, dois dos historiadores da referida década, a historiografia até então predominante havia ignorado os espaços de indefinição nos quais percebe-se as barganhas e os arranjos cotidianos empreendidos pelos cativos, e mesmo a percepção de como entendiam o seu viver, muito mais do que o mero sobreviver. Os escravos não foram vítimas nem heróis o tempo todo. O escravo aparentemente acomodado e submisso de um dia, poderia tornar-se o rebelde do dia seguinte, dependendo das circunstâncias. Embora conclua ter havido, muitas vezes, negociações no sentido de minorar a rigidez da escravidão, nega que tais negociações tenham a ver com a vigência de relações harmoniosas e idílicas entre senhores e escravos, como afirmam alguns. Destaca que, ao lado da sempre presente violência, havia um espaço social que se tecia tanto de barganhas quanto de conflitos. Na introdução do livro “Liberdade por um fio”, João Reis declara:

 

Onde houve escravidão houve resistência. E de vários tipos. Mesmo sob a ameaça do chicote, o escravo negociava espaços de autonomia com os senhores ou fazia corpo mole no trabalho, quebrava ferramentas, incendiava plantações, agredia senhores e feitores, rebelava-se individual e coletivamente. (...)”

 

Em Negociação e Conflito, João Reis e Eduardo Silva concentram seus esforços na recuperação dos escravos, que na medida de suas possibilidades, resistiram a se tornar meros objetos de um sistema que lhes era exterior. Dessa forma, estes sujeitos inventaram o seu viver, seja através da negociação mais imediata, corriqueira e mesmo pacífica; seja através do conflito individual ou coletivo, que se corporificava nas insurreições e quilombos.

Recentemente, no início da década de 90, surge no cenário da historiografia brasileira, o polêmico historiador Jacob Gorender, com sua obra provocativa “A Escravidão Reabilitada”.

O autor questiona avidamente os trabalhos produzidos na década de 80, disparando farpas no que ele chama de “Escola Unicampista”. Vê nessa escola, a tentativa de ressuscitar o mito da democracia racial, a afirmação de uma escravidão benevolente e mascara, mais uma vez, o aspecto violento desta. Afirma terem esses “historiadores de status universitário, imprimido às suas pesquisas um direcionamento ideológico...”.

Gorender analisa e critica as obras que enfatizam as brechas nas relações senhor-escravo, as quais possibilitam uma vida menos oprimida para os escravos. Embora admita ter havido certa elasticidade nas relações, afirma terem sido em casos raros, do contrário, o próprio caráter da escravidão seria afetado e mudado. Assim, nada “invalidava a objetivação do escravo enquanto mercadoria e a instabilidade de qualquer melhora individual porventura alcançada”Na sociedade colonial escravista, o meio de dominação fundamental não é o consenso e sim a violência sistematizada, a qual mantém a submissão dos escravos no cotidiano.

Todavia, admite Gorender, o escravo não aceitava a escravidão. Era obrigado a adaptar-se a ela. Demonstração disso, eram não só as fugas para os quilombos, das insurreições, mas também na vida cotidiana, como mau trabalhador, como sabotador do trabalho, exigindo assim, um alto custo de vigilância. “O escravo era um sujeito, tinha subjetividade, podia reagir ao senhor, seja pela insubordinação, pela astúcia, ou pela violência, ou mesmo em alguns casos – pela negociação. Isso não deixava de fazer com que, então socialmente, ele fosse uma coisa”.

Diante do exposto, podemos observar que a historiografia brasileira por muito tempo encarou a escravidão de forma bastante rígida. O escravo foi visto alternadamente como herói ou vítima e, sempre como objeto, de seus senhores, de seus próprios impulsos, ou ainda a história que se propunha estuda-lo.

Recentemente, na historiografia brasileira, vem ganhando corpo uma abordagem que vê a escravidão, sobretudo da perspectiva do escravo, um escravo real, não reificado nem mitificado, resgatando assim as pequenas e grandes conquistas do dia-a-dia daqueles que, inversamente ao que até hoje se supôs, resistiam a se tornar meras engrenagens do sistema que os escravizara.